Por Tiago Pavinatto
Nesta semana que acaba, dois assuntos abalaram as minhas principais linhas do tempo: As câmeras indiscretas flagrando a intimidade de casais gays na cabine da balada e o rebaixamento do Brasil, leia-se perda do grau de investimento. Balançando a cabeça como na cadência de um misturador de bebidas, leio em meu pensamento: Rebaixamento leva os homossexuais a perder o grau de investimento. Balançando mais, sai um neologismo: Rebichamento.
Nos idos de 2006, um pessoal da faculdade de jornalismo da Universidade de São Paulo (USP) procurou a mim e ao Dr. Fernando Lee, um renomado cientista que, no ano anterior, estreara com o jornalista Marcelo Bonfá o que seria o primeiro programa abertamente gay da televisão brasileira, “Um Olhar” – uma mesa redonda (cujo coquetel de lançamento ocorrera na então nova casa noturna gay de São Paulo, a The Week) que, infelizmente, não teve uma segunda temporada por falta de patrocinadores –, para um debate sobre a proibição de doação de sangue por homossexuais. Enquanto eu, àquela época ativista e desenvolvendo um trabalho pró-casamento gay junto à querida Professora Titular Teresa Ancona Lopez na Faculdade de Direito da USP do Largo São Francisco, ambiente hostil aos gays naquela altura, defendia o fim desse enquadramento e a consequente revogação dessa proibição, o Dr. Fernando Lee, em sentido contrário ao meu, apresentou os fatos: Sou gay e conheço os gays, dizia ele. A promiscuidade entre nós reina, sim. Quem disser o contrário, concluiu com a calma na fala que lhe é peculiar, estará mentindo – tanto é que ninguém prova, em geral, o contrário. Voltaremos ao tema.
Agora, volto ao limiar do ano 2000, quando minha querida amiga Dra. Maria Berenice Dias publicou a primeira edição de União Homossexual – O Preconceito & a Justiça (meu exemplar, a terceira edição de 2006, carinhosamente dedicado com um “Tiago, querido, te amo”). Iniciada a batalha no campo da doutrina jurídica, a então tornada magistrada dos gays cunhou, não me lembro exatamente do ano, o termo homoafetivo – embora sua paternidade seja reivindicada pelo Constitucionalista Sérgio Resende de Barros. Apesar de, em vernáculo, homoafetividade não ter nada a dizer, pois da combinação da raiz grega homo (igual) com a palavra latina affectus (um estado psíquico ou moral, uma afeição, disposição d’alma, estado físico, vontade) resulta tão-somente igual afeto, que, do ponto de vista do significado, não tem o condão de designar uma relação entre pessoas do mesmo sexo – e a expressão do mesmo afeto, assim, pode mesmo ser qualificadora até de relações heterossexuais com igualdade de afeto, embora o afeto não possa ser mensurado –, o termo foi uma grande conquista social e política, já que, a partir do pensamento heteronormativo e patriarcal, verbalizou que o sentimento de um casal homossexual é tão romântico e afetuoso quanto o de um casal heterossexual.
Voltando ao sangue, a portaria do Ministério da Saúde 2.712, de 12 de novembro de 2013, que redefiniu o regulamento técnico para os procedimentos hemoterápicos, manteve, de forma expressa, o gay masculino no rol de inaptidão para doação no seu artigo 64, II; mas, quanto aos relacionamentos, giro copernicano. A afetividade venceu o sexualismo e, não somente no que toca aos direitos familiais, os casais gays vem se inserindo na cultura do cotidiano.
Depois do casamento igualitário, fica cada vez mais forte e justificável o ataque à atribuída promiscuidade homossexual masculina e à letra da Portaria Ministerial mencionada. Mas, aí vem o rebichamento: Homossexuais violam a intimidade de seus pares e, incompreendida inclusão digital, registram em vídeo, com seus smartphones ao alcance da prestação, transas em cabines de banheiro de balada.
Não que a cabine do banheiro de uma boate seja o lugar mais propício para o ato sexual, mas a maldade da divulgação criminosa suja as conquistas da homoafetividade e, ao final, fortalece por amostragem nada científica, o preconceito na questão do sangue.
Sem discorrer sobre a cultura do banheirão, o impulso sexual não é exclusivamente gay. É humano… É animal.
Heterossexuais talvez não transem nas cabines dos banheiros das boates com frequência posto serem colocados em diferentes localizações geográficas, mas podem muito bem burlar as regras e fazer o mesmo (o filme nacional Divã mostra os personagens de Lílian Cabral e Cauã Reymond fazendo sexo no banheiro de um baile funk – por acaso, a locação para ambientar a cena foi a antiga The Week do Rio de Janeiro).
Muitas coisas podem ser questionadas quanto ao ato sexual da cabine. Tantas lições de moral… Mas o pior de tudo é o rebichamento, a violação da intimidade, a divulgação da intimidade, a maldade gratuita que penaliza não somente os amantes (se é que havia amor), que deveriam ser mais cuidadosos não se pode negar, mas a todos os homossexuais e, porque não, os brasileiros, cuja simpatia, já bem explicou o respeitado sociólogo Manuel Castells, não passa de um mito, fato que muito se prova pelo racismo, sexismo e pelas mais variadas formas de violência expressadas nas redes sociais. O brasileiro, especialmente o brasileiro gay, vem se mostrando inapto para a liberdade, tão inapto que, podemos pensar, clama até por um “fiscal de banheiro”.
Já, quanto ao ato sexual na pista de dança, aí temos crime de prática de ato obsceno (Código Penal brasileiro, artigo 233), punível com detenção de 3 meses a 1 ano ou multa. Nesse caso, é honesto de nossa parte observar que o realizador do vídeo já não é mais o problema. Os copuladores é que são os agentes do rebichamento – e veja, aqui, o sexismo brasileiro: Estamos cansados de ver e ouvir sobre sexo em público nos bailes funk e, nem por isso, os seus frequentadores estão na lista de inaptos para doar sangue do Ministério da Saúde
Nota que o caso, embora parecido, é bastante diferente? A barreira da cabine, a porta fechada, quer dizer muita coisa.
Quando eu era criança, tinha medo de assistir ao trecho do noticiário anunciado pelo Sérgio Chapelin como “imagens do cinegrafista amador”. O cinegrafista amador, hoje reconheço, prestou grandes serviços à sociedade, mas o cinegrafista amador de banheiro… Ah, esse cinegrafista… Além de daninho, é a fotografia do maior problema do nosso país: A educação – ou a falta quase que completa dela.
*Tiago Pavinatto é advogado, pós-Graduado em Direito do Trabalho e mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo do Largo São Francisco (USP), colunista do Estadão Online e colaborador do Vipado.
Foto: Reprodução
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